A democracia até funciona, quando o povo se mobiliza.
No passado domingo, 12 de Fevereiro de 2023, os eleitores da freguesia de Benfica, em Lisboa, foram convidados a expressar democraticamente a sua opinião quanto ao aumento das zonas tarifadas da EMEL na freguesia, votando num referendo com a seguinte pergunta: “Concorda que a Junta de Freguesia de Benfica emita um parecer favorável à colocação de parquímetros nas zonas de estacionamento de duração limitada de Benfica?”
Apesar da competência de regular a atividade da EMEL estar na Autarquia de Lisboa, as Juntas de Freguesia dão um parecer, favorável ou desfavorável, à entrada da EMEL, o que naturalmente pode colocar alguma tensão na relação entre os dois poderes locais. Apesar de Benfica ser uma junta com gestão socialista há vários mandatos, o atual presidente defendeu em período eleitoral que a junta não tomaria uma decisão relativamente à EMEL sem consultar os fregueses. O facto de a “cor” política da Câmara Municipal ser hoje diferente, deve ter dado algum prazer ao presidente da Junta de Benfica, Ricardo Marques, colocando do lado da Praça do Município a responsabilidade de procurar soluções de estacionamento para quem entra em Lisboa e utiliza depois os transportes públicos.
Tudo começou no final de 2022 quando um grupo de moradores de um dos bairros de Benfica lançou uma petição a pedir a entrada da EMEL nesse bairro, alegando falta de lugares de estacionamento – algo transversal em várias zonas da freguesia – mas ignorando o facto de o estacionamento de viaturas externas à freguesia ser essencialmente durante o horário diurno, e a falta gritante de estacionamento se acentuar no período noturno, período em que a EMEL apenas funciona em certas zonas do centro de Lisboa. Na zona em questão, Calhariz Novo, o real problema que nunca foi abordado nem na consulta pública aos fregueses nem na campanha, foi o fim de mais de 100 lugares no local onde hoje funciona a nova USF. Com o fim deste parque de estacionamento e com o resto da zona ocupada pelo apoio à obra, e pelos pré-fabricados da antiga USF, os moradores passaram a ter um problema de estacionamento grande. Com a petição a favor da EMEL a correr, que no final recolheu 209 assinaturas, surgiu uma resposta enérgica em sentido contrário: “Não à EMEL em Benfica”, que, no final, teve 1312 assinaturas. Um prenúncio interessante para o referendo.
O movimento “Não à EMEL” teve o contributo de diversas associações de moradores, movimentos importantes na freguesia que a tornam diferente da generalidade das restantes freguesias de Lisboa. Das sete associações que representam moradores de Benfica, cinco juntaram-se pelo “Não”, refletindo a posição da maioria dos seus associados. Se na petição o fosso começou a ser claro, uma parte da freguesia queria resolver o seu problema, transferindo-o para outras zonas da freguesia, a campanha do referendo mostrou bem a ilusão que quiseram vender a respeito da atividade da EMEL: estacionamento disponível à porta, mais lugares disponíveis e gratuitidade do estacionamento.
Apenas se esqueceram de o facto da freguesia estar “retalhada” em nove zonas, sendo que o dístico de residente apenas garante o estacionamento gratuito na zona de residência e numa zona contigua, o que tornaria a circulação dentro da freguesia paga para a generalidade dos habitantes, fruto de um desenho de zonas habilidoso por parte da EMEL.
Sendo Benfica uma freguesia com muito comércio local, onde o mercado é o ponto central para milhares de pessoas, muitas delas oriundas de outras freguesias, o potencial de receita da EMEL seria muito interessante neste caso. Hoje, o estacionamento na zona do mercado torna-se complicado em determinados horários, mas, curiosamente, não se vê um agente da Polícia Municipal em funções de regulação de trânsito. Agentes esses que encontramos facilmente nas zonas da EMEL para legitimar uma das maiores fontes de receita da empresa: o reboque de viaturas.
Nas redes sociais a campanha foi muito animada: o SIM trouxe à tona um grupo de ativistas pela mobilidade, que vê na EMEL uma forma de condicionar quem tem mais do que um carro no agregado familiar pois a utilização do espaço público deve ser paga. Hoje, na ressaca dos resultados, são estes os mais revoltados e inconformados, são os que chamam tontos e burros a quem votou pelo NÂO e que nem sequer vivem na freguesia. São aqueles que defendem ciclovias e transportes públicos, mas que depois se esquecem que uma jornada de 15 min de carro entre casa e o trabalho se transforma num calvário de hora e meia nos transportes públicos, isto quando não há greves que condicionam o serviço e colocam os utentes em modo “sardinha em lata” na parca oferta existente.
No final o NÃO obteve 79,5% de votantes e o SIM 20,1%, tendo votado cerca de 30% dos eleitores da freguesia de Benfica.
Como resposta, os defensores do SIM argumentam agora que o referendo não é vinculativo e que a EMEL deve vir na mesma, o presidente Ricardo Marques já assumiu que a Junta de Freguesia vai cumprir com o resultado claro do referendo, passando para a CML a necessidade de resolver o problema de estacionamento da freguesia e os apoiantes do NÂO aguardam pacientemente enquanto desfrutam do resultado e da consequente azia do outro lado. Pelas redes sociais, novas vozes de outras freguesias saúdam o referendo e questionam porque é que na sua freguesia não foi assim.
Se alguma conclusão se pode, desde já, inferir desta consulta pública realizada na freguesia de Benfica, é a de que nunca se deve menosprezar o poder de um pequeno grupo de indivíduos devidamente mobilizados por uma causa: a sociedade civil tem um enorme poder que não está habituada a utilizar em Portugal, excepto em casos pontuais como este, em que fez valer a sua voz.
Que esta sirva de exemplo a muitas outras causas!
P.S. – Se todos os habitantes de Benfica tivessem carro elétrico, o dístico verde permite o estacionamento gratuito em toda a cidade. Afinal o problema é a ocupação do espaço público ou a utilização de carros com motores a combustão?