Manuel J. Guerreiro

O comboio que é preciso apanhar

Falar de transportes públicos terrestres de passageiros em qualquer sítio minimamente desenvolvido implica, necessariamente, incluir como categoria principal os comboios. Todas as tipologias deste meio de transporte que circulam sobre carris. Sejam os comboios de longo curso internacionais e nacionais, os regionais, os urbanos, os ligeiros, como os metropolitanos clássicos subterrâneos ou de superfície, e os eléctricos.

Nos países desenvolvidos, só depois de esgotadas todas as rotas e linhas dos carris de ferro, surgem os autocarros como alternativa, mas, sobretudo, como complemento daqueles, garantindo a mobilidade de todos os cidadãos por via pública de transporte nos locais onde é impossível lá chegar doutra forma.

Isto dito, se por um lado é inegável que a entrada de Portugal na União Europeia (então CEE) foi absolutamente determinante para o salto quântico conseguido no que ao desenvolvimento do país concerne – designadamente na construção de um sem número de equipamentos públicos, a criação de uma extraordinária rede de estradas e auto-estradas, escolas, universidades, hospitais, centros de saúde, pavilhões desportivos, centros de congressos – bastariam, por outro lado, estes dois primeiros parágrafos para se concluir que, do ponto de vista dos transportes públicos ferroviários e respectivas redes, o nosso país não está na linha da frente e nem sequer no fim do pelotão dos países desenvolvidos. Muito pelo contrário, o mapa ferroviário português revela um profundo atraso e uma decadência ao nível dos países da UE provenientes do antigo bloco de Leste. Porém, com uma agravante que nos coloca no fim da tabela dos mais atrasados, auto-relegados para um isolamento do tipo “orgulhosamente sós”. Mas, vamos por partes.

No plano interno é verdadeiramente inacreditável que, em plena década de 20 do século XXI, Portugal conte com uma rede ferroviária activa de cerca de dois terços daquela que já teve até ao início dos anos 90 do século passado, tendo a partir de então e até aos nossos dias vindo a desactivar linhas atrás de linhas, num total de 30% da rede. Este definhamento dos caminhos de ferro nacionais tem vindo a ocorrer perante a passividade política dos sucessivos Governos, que nunca quiseram olhar para este tema como fundamental e estratégico. Prova disso mesmo é a miséria inaudita que constitui todo o investimento feito nas últimas três décadas na “renovação” e modernização da rede ferroviária actualmente em funcionamento, sendo absolutamente decepcionante (por praticamente inexistente) a criação de novas linhas, incluindo as de metropolitano, com honrosa excepção do metro do Porto.

Lisboa, uma das 27 capitais europeias, não apenas se tem revelado francamente tímida no investimento feito no crescimento da sua rede de metro – com umas constrangedoras quatro linhas, uma das quais em breve pateticamente circular, numa extensão total de 44 Km e 56 estações que a configura como uma das mais pequeninas redes de metropolitano de toda a Europa, incluindo a do Porto (com 67 Km e 81 estações, distribuídas por seis linhas) – como resolveu, nos idos anos 90, desactivar uma série de carreiras de eléctrico, tal como já tinha ocorrido nos anos 70, inutilizando e nalguns casos tapando e destruindo os carris da imensa rede de eléctrico de que a cidade dispunha e que chegava praticamente a todo o lado, sendo substituídos por autocarros poluentes, num claro retrocesso civilizacional e tecnológico, cuja justificação dos responsáveis por tal decisão política certamente se explicará com recurso à psicanálise.

A maior fatia do “investimento” feito nesta área durante estes mais de 30 anos foi realizada em estudos, “powerpoints” e muitas apresentações “java” para impressionar as muitas audiências, como diria o saudoso Dr. Medina Carreira, para embebedar as pessoas com conversa.

É inaceitável que Portugal continue a não apanhar o comboio da mobilidade moderna, como acontece em todos os países desenvolvidos da UE. É inadmissível que as 18 capitais de distrito do nosso país, no continente, não estejam todas ligadas por comboio. É insultuoso para com a população – que tudo paga através do esbulho violento que é a carga fiscal imposta pelo Estado – não poder contar com uma rede ferroviária decente e com comboios modernos, confortáveis e rápidos, enfim, um serviço de qualidade que implica o completo desmantelamento da anacrónica “CP” e a entrada em cena de novos “players” privados que garantam essa qualidade que os contribuintes merecem como, aliás, de certa forma, beneficiam os residentes da margem sul do Tejo através da “Fertagus”. É ultrajante estar-se a electrificar linhas únicas de dois sentidos, totalmente obsoletas e inúteis, como são os casos de praticamente todas elas, apenas com excepção das linhas urbanas das duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e das linhas de longo curso do Norte (Braga – Lisboa) e parcialmente do Sul (Lisboa – Faro) até Alcácer do Sal.

Mas se, internamente, o estado da arte na ferrovia é isto que sabemos – com muitos processos de intenção, alicerçados em estudos intermináveis, por vezes contraditórios, polémicos e geradores de desconfiança e descrédito dos cidadãos eleitores nos eleitos para os vários poderes políticos executivos, feitos por especialistas portugueses de ferrovia e de comboios num país que não os tem e, por conseguinte, resultando em poucas ou nenhumas decisões políticas efectivas –, o que dizer sobre a patológica insistência na ridícula bitola ibérica que nos autolimita quanto ao acesso à e da Europa?

Mas quem são os génios que ainda defendem a manutenção deste modelo isolacionista do século XIX, adoptado por Espanha e Portugal, e que, à época, serviu para impedir o acesso ferroviário proveniente de França, dificultando a entrada das forças invasoras napoleónicas? Dar-se-ão conta do mal que têm feito ao país com esta treta pseudonacionalista bafienta?
Acham mesmo que não há pressa em fugir deste embaraçoso beco sem saída?

Creio que é tempo de resolvermos este assunto e sermos determinados nas decisões políticas necessárias para tanto.

A esse respeito acompanho, naturalmente, o manifesto intitulado “Portugal – uma ilha ferroviária na União Europeia”, assinado por um conjunto de 39 empresários, gestores e investigadores e tornado público no final de Julho de 2017, i.e., há seis anos…
Quanto tempo mais precisamos para apanhar este comboio?

Artigo publicado no semanário “o Diabo”, de quintaa-feira, dia 31 de Agosto de 2023

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